quarta-feira, 27 de julho de 2011

Inerrância das escrituras



A questão da inerrância e autoridade da Bíblia é um assunto amplamente discutido nos meios acadêmicos. Ainda que grupos mais conservadores a consideram uma doutrina que está no mesmo nível dos principais dogmas da fé cristã, portanto não passível de ser submetida a debates, é inegável, contudo, a existências de outras ideologias. Talvez com a mesma capacidade de sustentação teológica. Nesta oportunidade quero fazer uma exposição abreviada de três alternativas de conceitos relacionados a este tema. Respeitando, obviamente, a posição de cada um. Não escondendo porém, a minha preferência pela postura neo-ortodoxa, proposta por Karl Barth descrita no terceiro tópico.

1.      Posição fundamentalista;
Com o grande impacto provocado pala teologia liberal no final do século XIX, houve uma reação dos teólogos comprometidos com as formas da ortodoxia protestante. E na tentativa de preservar os pontos vitais da teologia reformada surgiu um movimento que ficou conhecido como fundamentalismo. A posição adotada por esse pensamento, era de que qualquer pessoa que questionasse um único ponto do seu sistema doutrinário protestante fundamentalista seria acusada de heresia ou mesmo de apostasia. Alguns teólogos consideram o fundamentalismo uma reação exacerbada, típico de qualquer ala extremista. A essência da teologia fundamentalista era o reconhecimento da autoridade plena das escrituras. Sua principal ambição era defender a inspiração verbal e infalibilidade (inerrância) da Bíblia. Nenhuma contestação era aceita no que se referia à inspiração sobrenatural e verbal das escrituras. Um dos grandes expoentes e precursor da fé fundamentalista foi o teólogo reformado Francis Turretin (1623-1687), que admitia enfaticamente a inspiração verbal em toda a escritura de forma bastante extrema, que quase considerava uma forma de transcrição do Espírito Santo. Alegava também que até os pontos vocálicos dos textos bíblicos eram divinamente inspirados, e, portanto inerrantes. Outro renomado precursor do fundamentalismo foi Charles Hodge (1797-1878) que insistia que a inspiração e a infalibilidade se estendem as próprias palavras da Bíblia, e não apenas as idéias. Tanto Turretin com Hodge tiveram forte influência na metodologia do conceituado seminário teológico de Princeton, que durante um período de mais de cem anos formou teólogos com forte inclinação ao fundamentalismo, que se tornou em um movimento em 1910.
Grande parte dos teólogos, concordam que o fundamentalismo é apenas um desenvolvimento, uma extensão mais extremada deste grupo em relação à infalibilidade das escrituras, como resposta à crítica, pois se trata de um conceito antigo. Acreditam que esta doutrina retroceda no mínimo até Agostinho (354-430), e que, a igreja, em toda a sua história sustentou a completa confiabilidade das escrituras. O próprio catolicismo sempre afirmou a inspiração da Bíblia, mas durante o período medieval a tradição foi progressivamente elevada como fonte de autoridade igualmente válida. Essa posição foi formalmente adotada no concílio de Trento (1545-1563). Os protestantes responderam com a doutrina da Sola scriptura, que é uma afirmação direta da autoridade absoluta da Bíblia. Mais tarde na assembléia de Westminster enfatizaram também a inspiração verbal e inerrância absoluta das escrituras. É bom lembrar que a confissão de Westminster é totalmente calvinista e distintamente puritano. Por isso fundamentalista. Ainda hoje uma ala do evangelicalismo adota essa confissão como tendo autoridade igual às escrituras.
A inerrância continua sendo até hoje o padrão para a maioria das denominações evangélicas tradicionais. Muitos Seminários bíblicos e Faculdades adotam esta postura no que diz respeito à infalibilidade da Bíblia.

2.      Posição liberal
Como já foi dito no início desse artigo, o liberalismo teológico foi fator decisivo para o surgimento do fundamentalismo. Pois consideraram o liberalismo uma verdadeira ameaça a ortodoxia. Então procuraram salvar o que de mais importante havia para a igreja: a total confiança na inspiração sobrenatural da Bíblia.
A teologia liberal por sua vez tinha a proposta de ajustar a Bíblia à cultura moderna. Este movimento é caracterizado pela negação de dogmas importantes da fé cristã, mas sobretudo da inspiração bíblica. Alguns teólogos liberais foram tão radicais nas suas conclusões que descartaram qualquer crença literal no sobrenatural e no milagroso. Não eram todos assim, mas de modo geral todos eles tentaram construir uma teologia cristã nova, que fosse totalmente compatível com o que havia de melhor na modernidade e na ciência. O pai da teologia liberal foi Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Segundo historiadores Schleiermacher tinha na mais alta estima as escrituras, mais considerava que a experiência religiosa tinha muito mais autoridade. A Bíblia, declarou, não é a autoridade absoluta, mas o registro das experiências religiosas das comunidades cristãs primitivas, portanto forma um padrão para as tentativas contemporâneas de interpretar a relevância de Jesus Cristo para as circunstâncias históricas específicas. Ela não é sobrenaturalmente inspirada e nem infalível. Schleiermacher relega o Antigo testamento a uma condição de total irrelevância para a formação normativa do Novo testamento.
Mas quem sacudiu mesmo o mundo teológico do século XX foi Rudolf Bultmann (1884-1976). Quando inventou a teoria da demitologização. Bultmann propôs uma ruptura radical entre história e a fé, e argumentou que, se o novo testamento devia ser aceito pelo homem moderno, ele deveria ser demitologizado e reinterpretado de forma convincente. Sua idéia central era de que o novo testamento era composto de mitos, e trabalhou com a proposta de eliminar todos os mitos contidos nele. Resultado: pouca coisa sobrou a não ser o Kerígma; A mensagem de Cristo contida nos mitos. Enfim; para boa parte dos teólogos liberais a Bíblia é um livro falível e mitológico.

3.      Posição neo-ortodoxa
Karl Barth (1886-1968) foi responsável por trazer em sua teologia uma posição mais equilibrada acerca da questão da inerrância. Para muitos observadores da teologia moderna, Barth consta como grande reformador à altura de Lutero, porque, assim como o reformador alemão do século XVI, Barth derrotou quase sozinho a oposição e recuperou a imagem do Evangelho cristão em tempos de crises. Ao que tudo indica uma das razões que o levou a formular uma nova teologia, foi sua desilusão com os extremistas tanto da ala liberal como dos radicais. Apesar da teologia de Barth ser um convite de volta para a Palavra de Deus, seu ponto de vista em relação à inspiração e  inerrância estava longe de ser ortodoxa. Para Barth a Bíblia pode se tornar a palavra de Deus, mas não é o mesmo que ela. A Palavra de Deus, assim como o próprio Deus, está acima de qualquer objeto ou mesmo da história como um todo. A Palavra de Deus é a mensagem de Deus à humanidade na história de Jesus Cristo. Barth afirmava que a Palavra de Deus é transcendente, está até mesmo acima da Bíblia. A Bíblia é um instrumento da Palavra de Deus. Ela se torna sua Palavra sempre que Deus decide usá-la para levar os seres humanos ao encontro salvífico consigo. Mas ela não é um conjunto de proposições divinamente reveladas. Para Barth a Bíblia não era a Palavra de Deus no mesmo sentido que Jesus Cristo o é. Jesus Cristo é a Palavra de Deus porque é o próprio Deus. A Bíblia é uma das manifestações da Palavra de Deus e inclusive uma manifestação secundária. É o testemunho ordenado por Deus, da Palavra de Deus na pessoa de Jesus Cristo e se torna a Palavra de Deus sempre que Deus decide usá-la para encontrar-se com uma pessoa e confrontá-la com o evangelho. Então a Bíblia é a Palavra de Deus à medida que Deus a torna sua Palavra, a medida que fala através dela. Barth rejeitava a inerrância bíblica. A Bíblia, para ele, era totalmente humana. É um livro com o testemunho humano de Jesus Cristo e, a despeito de ser tão humano, é incomparável porque Deus faz uso dele. Quem conhece as obras de Barth, percebe que ele tinha a Bíblia em alta estima. Então suas negações não visavam desacreditar a Bíblia, mas somente exaltar Jesus Cristo acima dela. Jesus é Senhor! A Bíblia, não. É um testemunho do Senhor. Dizia.

Conclusão
Geralmente quando uma pessoa entra em defesa da inspiração total da Bíblia o texto utilizado via de regra é 2 Tm 2:16. Que diz: “Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça”
O texto de 2 Tm 2:16 foi tirado da versão ARC (Almeida revista e corrigida), versão produzida por João Ferreira de Almeida que usou como fonte o Textus receptus para o novo testamento e o Texto Massorético para o antigo testamento. Que é na concepção dos cristãos conservadores, uma versão de total confiabilidade. Contudo o texto citado sugere que “Toda escritura inspirada por Deus é útil...”, e não: “Toda escritura é inspirada por Deus e útil...”.
Na minha modesta opinião ou crença, creio que Deus na sua soberania, permitiu que textos inspirados por Deus chegasse até nós, sobretudo no que diz respeito às doutrinas essenciais para nossa salvação. No entanto não creio que Deus ditou a Bíblia de uma ponta à outra. Creio sim que muitas declarações que constam na Bíblia foram feitas por Salomão, por Davi, outras por Paulo, e ainda outras por João. Algumas declarações bíblicas são uma coletânea de sabedoria universal, outras são cânticos de lamento de um povo oprimido no cativeiro, outras são verdadeiros gritos de guerra entoados no calor de uma batalha, e ainda outras que são na verdade orações imprecatórias que tinham seu devido valor no contexto em que foram feitas, mas que não cabem mais dentro de uma cosmovisão cristã. Além de uma grande quantidade de Histórias de pessoas que tiveram uma experiência com Deus e deixaram registradas para a posteridade.
Não posso deixar de fazer referência à pessoas ou instituições que apesar de defenderem a infalibilidade das escrituras, presumem que determinados textos devem ser interpretados a luz do contexto histórico e cultural como determina algumas regras básicas da hermenêutica, não percebendo que com isso acabam atestando indiretamente que as escrituras foi infalível para determinada época ou cultura, cabendo portanto, a possibilidade de fazer adaptações para que o texto se ajuste a conjuntura atual. Logo, exclui em tese, a infalibilidade da Bíblia.
O conceito de que alguns textos não precisam ser necessariamente considerados inspirados por Deus não diminui em absolutamente nada o valor e autoridade das escrituras. Não exclui de maneira alguma o testemunho dado por Jesus Cristo e pelo Espírito Santo no tocante às doutrinas fundamentais da fé cristã, e nem a necessidade de submissão as reivindicações que a própria Palavra de Deus nos faz

Um abraço, Donizete

Bibliografia:
História da teologia cristã, Roger olson
Os grandes teólogos do século XX, Battista Mondin
Uma introdução a teologia, M. James Sawyer  

4 comentários:

  1. Muitos podem não concordar comigo, porém eu tenho minhas reservas quanto algumas informações sobre o dilúvio. Não duvido da existencia dele e também não duvido da existecia da Arca de Noé. Porém as medidas da arca descrita no livro de Gênesis são semelhantes há de um navio transatlantico de hoje (o que para época era algo realmente descomunal). Mas numa arca ou navio semelhante a um transatlantico caberia todas as espécies de animais do mundo?

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  2. Anônimo.

    Existem várias teorias com diferentes enfoque que tentam explicar a infalibilidade das escrituras:
    . Teoria da inspiração natural humana
    . Teoria da inspiração divina comum
    . Teoria da inspiração parcial
    . Teoria do ditado verbal
    . Teoria da inspiração das ideias

    Eu creio que o livro Bíblia contém a Palavra de Deus como disse acima, e não a considero na sua totalidade um todo fechado como inspirado e inerrante. Sendo assim devo admitir que ela contém erros.
    Contudo, os erros da bíblia ficam mais evidentes quando a lemos somente em seu sentido literal.
    Mas os cristãos fundamentalistas não têm essa capacidade de afirmar tal coisa, pois creem que em sua literalidade, a bíblia é totalmente inerrante. Mas quando ficam frente a frente com as inúmeras contradições de alguns texto, precisam construir teorias para justificá-las. mas a melhor teoria, que é extrapolar a literalidade do texto, essa eles não conseguem admitir, pois vai contra suas crenças equivocadas do que seja "inerrância".

    A Bíblia para muitos, como dizia Barth: É umpapa de papel.

    Abraços.

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  3. Ola Donizete

    Somente para constar, embora o texto citado por você nas traduções utilizadas tragam variáveis, e mesmo o texto receptus e o texto critico que atualmente é o texto padrão utilizados por quase todas as sociedades bíblicas mundiais nas traduções com exceção da sociedade trinitariana que ainda utiliza o texto receptus, tendo algumas discrepâncias entre si, neste caso eles são idênticos.

    Antônio Reis

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  4. Pertinente o seu adendo Professor Antônio Reis!

    De fato para a sociedade trinitariana, até mesmo a ARC foi corrompida a partir de 1948, Quando trocaram a nomenclatura do textus receptus por texto majoritário. Na verdade para esta editora todas as versões estão corrompidas, com exceção da "sua" revisada e fiel. O que no meu visto é uma concepção retrógrada tendo por vista os extraordinários achados arqueológicos.

    O texto de 2 Timóteo que citei, geralmente é um trunfo utilizado por alguns defensores da inerrância, que desconsideram aspectos importantes, exatamente em função dessas variáveis!

    Valei pela colaboração! Um abraço.

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