quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Teologia do processo





Por Donizete.


A teologia do processo representa a tentativa de alguns pensadores cristãos contemporâneos de reconstruir a doutrina de Deus e toda a teologia cristã, para harmoniza-la melhor com as crenças modernas sobre a natureza do mundo. Os pensadores da teologia do processo partem da pressuposição prática de que a teologia cristã deve ser atualizada e revisada em cada nova cultura, à luz de seus interesses, questões e dúvidas específicas.

A rigor, se trata de uma resposta radical ao monergismo extremista agostiniano. Fundamentado no desejo de defender um conceito radical do livre arbítrio do ser humano, seus defensores negam que Deus saiba o futuro e que ele seja soberano sobre a história.

Antes porém, é bom observar que esta tendência filosófico-teológica não é uma exclusividade cristã. Mas teve sua gênese nos pensamentos de filósofos racionalistas do século XVII. Ela foi muito enfatizada nos ensinos que o filósofo judeu Baruch Spinoza, (fugindo da interpretação tradicional de seus compatriotas, como Maimônides por exemplo) empregou nas sinagogas portuguesas, e que teve grande influência não apenas entre os judeus secularizados. Ainda que ali, esta dialética se concentrava apenas nas questões que diferenciavam o teísmo do panenteismo. Atualmente, um significativo número de Rabinos também seguem esta tradição teológica.

É bom salientar que, alguns pensadores católicos romanos também aceitam alguns aspectos dela. Seu atrativo parece estar na solução que oferece para o problema do mal e do sofrimento dos inocentes. No século passado, as Guerras Mundiais e os holocaustos que as acompanharam desafiaram radicalmente as idéias de muitos teólogos a respeito de Deus e do sofrimento. A pergunta que insistia em não calar era: Onde estava Deus quando seis milhões de judeus foram executados em câmaras de gás e incinerados pelos nazistas? Para muitos teólogos contemporâneos, os horrores da guerra e do genocídio do século XX exigiam uma revisão radical das noções agostinianas do poder e da soberania de Deus. As respostas que o teísmo clássico fornecia a estas questões estavam longe de serem satisfatórias.

A questão era simples, se Deus pudesse impedir as chacinas de homens, mulheres e crianças inocentes, ele teria feito. O caso portanto é que ele não podia. Por esta razão, os estudantes de teologias encontraram consolo e refúgio, e por que não dizer as respostas, no conceito de Alfred Whitehead (1) sobre Deus como um “companheiro no sofrimento”.

Conflito existencial semelhante viveu o Pr Ricardo Gondim. Num texto escrito por ele horas após o terremoto seguido de Tsunami na Indonésia, onde dezenas de milhares de pessoas morreram, ele apresenta sua teodicéia. E no limite de sua consternação diante daquela tragédia, fez os mesmos questionamentos dos pensadores que viveram o horror das guerras mundiais. E neste mesmo texto ele admite que, diante de fatos como estes, muitos alicerces onde são montados os edifícios teológicos, demonstram total insegurança. Por isso precisam ser urgentemente revistos.


E não é por acaso que no Brasil, o principal articulador do teísmo aberto ou teologia relacional (2) como ele prefere chamar é o próprio Gondim. Em um de seus textos ele ilustra a relevância desse ensino da seguinte forma:


“Na teologia clássica o futuro já aconteceu, não apenas por determinação de deus, que exaustivamente decretou que todas as coisas (boas e ruins) acontecessem, mas também porque ele em sua onisciência já sabe de tudo o que vai acontecer como já “acontecido”... Assim, não sabemos como nos comportar direito quando oramos e nem sabemos agir quando coisas ruins acontecem. Quando algum mal acontece, dizem-nos que a vontade de deus nunca é frustrada, e que ele tem uma agenda secreta que ainda não entendemos. Tentam nos confortar afirmando que precisamos apenas acreditar que ele tem o melhor para nós... Assim, vivemos uma esquizofrenia espiritual tremenda, cremos em verdades dogmáticas e agimos contrários a ela. A teologia relacional traz consistência à nossa espiritualidade, pois reforça a nossa compreensão paternal de Deus, lança luz sobre nossa responsabilidade e nosso infinito privilégio de cooperarmos com o criador. Somos artesãos do futuro. Numa teologia relacional o futuro inexiste e Deus nos chama para sermos parceiros de sua construção.”


No princípio, as idéias de Gondim pareciam ser limitadas aos seus escritos e discursos, inclusive sendo combatidos com severas críticas por personalidades evangélicas tradicionais. Entretanto, noções similares começaram a aparecer em diversos setores, e defendidas por líderes de diversos segmentos evangélicos.


Entre eles o influente Pastor Ed René Kivitz que também esboçou em alguns de seus textos, sua propensão a uma redefinição dos atributos de Deus e uma mudança nos paradigmas do pensamento, quando se propõe a encontrar a solução para o problema do mal.


Os defensores do teísmo clássico por sua vez, acusam os proponentes do teísmo aberto de possuírem no bojo dessa teologia traços panenteístas, de utilizar uma dialética hebraica bíblica que desconhece a realidade do mistério, de não saber lidar com as tensões existentes nas escrituras no que tange as revelações acerca da natureza de Deus. Segundo os críticos, esta teologia é uma forma inconseqüente de tirar das “costas de Deus”, a responsabilidade pelo sofrimento que há no mundo. Dizem que o resultado dessa boa intenção foi catastrófica. Sem contudo, apresentar uma refutação que enfraqueça as premissas que a teologia relacional usou como fundamento para o seu conceito.

Como me considero livre para pensar e tecer meus próprios fundamentos teológicos, baseados em premissas que em até certo ponto, extrapolam o que é aceito tradicionalmente, considero-me adepto da teologia progressista. (postura teológica que o Rev. Augustus Nicodemus educadamente desdenhou em seu livro “O ateísmo cristão e outra ameaças à igreja” capa utilizada na ilustração acima) Pois creio que a teologia é viva e dinâmica, jamais estática, assim como Deus também não. Por isso eu me recuso terminantemente ficar preso a qualquer sistema teológico, seja ele conservador ou liberal. Por esta razão não acredito que a melhor maneira de refutar o radicalismo calvinista, seja apresentar uma outra proposta não menos radical. Como no caso a teologia do processo fez.

Penso, que o importante seria não definir delimitações ou padronizar o modus operandis de Deus. A proposta da teologia do processo em promover radicalmente um esvaziamento de Deus em relação aos seus atributos não é das mais convenientes, por que não dizer tecnicamente impossível. Por outro lado manter a tradição milenar de atribuir aos propósitos secretos de Deus os acontecimentos trágicos que ocorrem, é prender o pêndulo na posição radicalmente oposta. Por esta e outras razões, uma visão teológica equilibrada se torna necessária para não desdivinizar Deus ao ponto de inferir que as situações fogem de seu controle, mas também não pressupor que Ele age motivado pelos sentimentos mais baixos que existem na natureza humana ou apresentar explicações evasivas em ralação ao problema do sofrimento no mundo.

Por isso, nada melhor do que evoluirmos junto à história. Não permitir que nossa teologia fique estagnada e se acomode em alguma radicalidade. Pois qualquer teologia radical terá sérios problemas e graves consequências.

Finalizo este texto com uma frase dita por um amigo certa vez: “a confissão de fé de quem é inteligente é construída na vida, na existência, no caminho. A estrada se abre enquanto se caminha e o caminho se faz enquanto anda nele”.


Abraços.


Notas:


1.     Alfred Whitehead. Um dos principais articuladores da teologia do processo na década de 30.
  
2.     Os termos teologia do processo, teísmo aberto e teologia relacional são intercambiáveis. Ainda que Gondim negue esta conexão, estudiosos afirmam que se trata na verdade de versões diferentes de uma mesma teologia.


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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Epistemologia

























No século XIX o Teólogo calvinista Charles Hodge observou que toda teologia é de certa forma uma filosofia. 
Apesar disso, a teologia nas escolas abrange apenas uma noção bastante superficial da filosofia. 
Há uma mentalidade entre os evangélicos, sobretudo entre os conservadores de que existe uma advertência bíblica acerca desta matéria. 
O Apóstolo Paulo na sua carta aos cristãos de Colossos escreve: “Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo” (Cl 2:8). Isso é interpretado como uma condenação geral da disciplina como um todo. Porém não tem como dissociar a teologia da filosofia.

Todos os estudantes da bíblia e os teólogos operam numa cosmovisão filosófica. 

Consciente ou inconscientemente, a filosofia e a cosmovisão formam nossa compreensão de Deus e a Bíblia. Apesar disso há resistência em muitos seminários de incluir a filosofia na sua grade curricular. 

O Ibicamp,(Instituto bíblico de Campinas) por exemplo, só colocou esta disciplina no curso de bacharel em 2011. 

Na verdade sempre houve uma discussão sobre a possibilidade de ter ou não uma filosofia chamada cristã. Assunto debatido por Tomás de Aquino e outros grandes filósofos cristãos do passado. Mas foi só no século XIX que o teólogo católico Etienne Gilson deixou claro a compatibilidade entre as duas disciplinas. Citando o próprio Aquino que disse que a filosofia é serva da teologia. Pois num sentido geral a teologia manipula a mesma ferramenta que o filósofo utiliza em seu trabalho: o pensamento. Portanto ninguém pode nos furtar: há uma filosofia cristã.

É bom nos conscientizarmos, que todo aquele que se aventura no campo da teologia, ou aspira ter um ministério eficaz na igreja, precisa ter pelo menos um conhecimento elementar de outras disciplinas. Como por exemplo: antropologia, sociologia, história. Mas principalmente a filosofia.

A epistemologia, tema proposto neste artigo, vem de duas palavras gregas ( “episteme” que sig. “ciência”, e “Logia” que sig. “estudo”), é um ramo da filosofia muito utilizado pelos teólogos. A epistemologia é a ciência que estuda a origem, a natureza, validade e limites do conhecimento. É uma investigação que se faz para saber como o que conhecemos hoje chegou até nós, e se por acaso eu posso defender ou contestar tudo isso. Em síntese a epistemologia explica: “como sabemos o que sabemos”.
Por esta e outras razões que se faz necessário a filosofia no campo da teologia. 

O objetivo central dessa reflexão é chegar exatamente a pergunta epistemológica: Será que aquilo que sabemos, cremos e praticamos atualmente corresponde a verdade no que se refere a vida cristã? Pois hão de concordar comigo de que qualquer estudo, ainda que superficial, sobre a história da igreja, conclui que sistemas teológicos vem e passam, nascem e morrem, as vezes num curto espaço de tempo. Que costumes ou hábitos comuns de grupos ou de uma sociedade estão sempre condicionados à alguma época ou cultura. Que doutrinas e dogmas que não admitia nenhum tipo de contestação, hoje se tornaram obsoletos. Ou será possível ignorar as importantes ponderações dos pensadores do período do iluminismo que solapou certezas cristãs até então tidas como inabaláveis? e que colocou a igreja num dilema que ela jamais poderia prever? 

Seguindo esta tendência, da qual bem falou Arnoud Toyenbee, que quando um sistema teológico desaparece, surge outro em seu lugar, não é nenhuma façanha prever que nas próximas décadas, estudantes de teologia situarão o pentecostalismo na história, como mais um movimento que surgiu, teve sua validade para determinadas gerações, mais como qualquer tradição, cedeu lugar a uma outra. Isso fica evidente quando o diagnóstico apura sinais de enfraquecimento do pentecostalismo. Sobretudo com a deflagrada e famigerada crise entre as ramificações do movimento. 

Não seria nenhum absurdo prever que o cristianismo reformado, dentro de pouco tempo se submeterá a uma nova reforma. Aliás, as articulações em âmbitos ainda abscônditos já começaram a serem feitas. Já quem sabe com um ideal longe do status de religião no qual foi transformado o cristianismo. Pois como disse Barth: "A religião é uma fábrica de ídolos". E quem sabe também, o "novo reformador" tenha ainda que seja, um lampejo do espírito iluminista, e se disponha a se abrir ao diálogo inter religioso.
Para finalizar, não estou com esta dissertação apresentando uma visão cética, ou colocando em cheque doutrinas válidas para a fé cristã. Mas sim levantando a possibilidade de que talvez, muitas de nossas certezas, com aparente lógica, não passam na verdade de mais um entre tantos axiomas cristãos.

A sensatez nos adverte que devemos refletir acerca de tudo o que nos for ensinado antes de qualquer ideia tornar-se em um dógma. 

Afinal de contas, Deus nos convida: “Venham, vamos refletir juntos”. (Isaias 1: 18)

Por Donizete.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Para os livres de pensamentos



Alguém certa vez disse que em Nietzsche o niilismo se tornou profético e pela primeira vez consciente. Particularmente gosto muito de ler suas obras, ainda que sua filosofia, em boa parte delas gira em torno da revolta, e não é difícil de identificar que a causa desse sentimento impresso em suas palavras é a religião. Sobretudo o cristianismo. Contudo, se ele ataca particularmente o cristianismo, ele visa apenas à sua moral, os aspectos cínicos da igreja, o comportamento contraditório de seus ministros, e por que não dizer, a idiotização de muitos de seus seguidores. Mas é importante destacar que, em nenhum momento ele atacou diretamente a pessoa de Jesus. Esta, em seus escritos continua intacta.


Este aforismo, extraído de sua obra Gaya ciência, expõe verdades que para aceitação do cristão representa cortar na própria carne. Pois nem sempre as verdades produzem conforto e satisfação, mas são capazes de acender a luz amarela em nosso caminho envolto pelo romantismo produzido por uma expectativa solitária do porvir, e esquecemos de viver sabiamente e salutarmente o agora.

Vamos acompanhar este raciocínio do pensador:

Os crentes e sua necessidade de crença.

“A crença é sempre desejada com a máxima avidez, é mais urgentemente necessária onde falta vontade: Pois é a vontade, como emoção do mando, o sinal distintivo de autodomínio e força. Isto é, quando menos alguém sabe mandar, mais avidamente deseja alguém que o mande, que mande com rigor, um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária.

De onde talvez se pudesse concluir que as duas religiões universais, o budismo e o cristianismo, poderiam ter tido a razão de seu surgimento, sobretudo de sua rápida propagação, em um descomunal adoecimento da vontade. E assim foi na verdade: ambas as religiões encontraram um desejo que, pelo adoecimento da vontade, se acumulara até a insensatez e chagara até o desespero, o desejo de um “tu deves”; ambas as religiões foram mestras no fanatismo em tempos de adormecimento da vontade e com isso ofereciam a inúmeros um amparo, uma nova possibilidade de querer, uma fruição do querer.

O fanatismo é, com efeito, a única “força de vontade” a que também se pode levar os fracos e inseguros, como uma espécie de hipnotização de todo o sistema sensório-intelectual em favor da superabundante nutrição (hipertrofia) de um único ponto de vista e de sentimento, que doravante domina – o cristão chama-o de crença.

Onde um homem chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna “crente”; inversamente, seria pensável um prazer e força da autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitando, como ele está, em poder manter-se sobre cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre por excellence.

Mas a religião sossega a mente do indivíduo em tempos de perda, de privação, de pavor, de desconfiança, portanto, quando o poder se sente sem condições para fazer diretamente algo para mitigar os sofrimentos de alma do homem privado: e mesmo diante de males gerais, inevitáveis e, de imediato, inelutáveis (fomes, crises monetárias, guerras), a religião assegura um comportamento pacato, paciente, confiante da multidão.”